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O ajuste dos planos |
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A nova orientação da política econômica conferida em 1983 pelo caráter da renegociação da dívida externa tendia a favorecer o planejamento de investimentos focados nas "vantagens comparativas" primário-exportadoras: acabara o período do desenvolvimentismo identificado com a industrialização e a alteração da base produtiva do país, recomeçara o período do ajuste recessivo e reforma do Estado, pontuado pela negociação da dívida externa em 1983, a troca de regime em 1985, a Assembléia Constituinte em 1988, as privatizações do patrimônio estatal em 1990 e a Reforma da Administração Pública em 1995, tratados a seguir.
No Clube de Paris reuniram-se os credores internacionais oficiais da dívida externa brasileira, agências governamentais e governos[1], nos quais a equipe brasileira de negociação centralizou seus esforços a partir de 1982, quando fora anunciado o recurso a empréstimo do Fundo Monetário Internacional, uma vez que a rolagem do serviço da dívida fora abortada no "Setembro Negro" de 1982 por falta de "dinheiro novo" que pagasse "dívida velha". Porém, o processo de estatização da dívida externa, âmago da geração de toda a dívida externa e interna, esse não foi abortado, ou seja, foi mais uma vez o Estado que levantou "empréstimos-ponte" para pagar a conta, agora, dos bancos privados brasileiros, que tinham tido suas linhas de crédito externas cortadas após 1982, e ficaram impossibilitados de emprestar internamente. Este bloqueio dos bancos privados nacionais foi o limite da crise financeira, quando esta atingiu a economia nacional não apenas na sua forma exterior no Estado, mas em sua totalidade, incluindo o crédito interno. Em socorro dos bancos nacionais, portanto, foram acumulados recursos do FMI, do Tesouro norte-americano, do Bank for International Settlements (BIS) e ainda de bancos privados estrangeiros, estes reunidos no Liaison Group, comitê de 18 bancos representando 650 credores privados. [2] O Liaison Group foi o segundo interlocutor da equipe brasileira de renegociação da dívida externa além do Clube de Paris. Já no ano seguinte de 1983, o Banco Central não pôde honrar seus compromissos diretos e indiretos (coberturas bancárias) sem recorrer novamente a saques antecipados. Mas a simples existência de atrasos de pagamento do Banco Central levou a distorções ainda maiores no perfil da dívida externa, porque esta era condicionada pelo perfil da dívida interna. Isto quer dizer que as disparidades entre as relações dos devedores privados brasileiros com seus credores e as relações do Banco Central devedor daqueles compromissos diretos ("empréstimos-ponte") e indiretos (coberturas bancárias) com os credores do Bank Advisory Committee condicionaram o mercado de câmbio de maneira tal, que "inibiram o fluxo de divisas para o Banco Central, invertendo, na prática, as prioridades de pagamentos ao exterior que normalmente se estabelecem em períodos como o que atravessava o país. O setor privado passou a absorver praticamente toda a disponibilidade de divisas no mercado de câmbio, mantendo seus pagamentos ao exterior em dia, enquanto se concentravam os atrasos do setor público".[3] A solução dos entraves encontrados na negociação com os bancos privados estrangeiros do Bank Advisory Committee foram por isso repercutir naquelas negociações com os credores oficiais do Clube de Paris. As linhas de crédito oficiais tiveram de ser re-equacionadas para o ano de 1984, e foram parte integrante do arranjo político da eleição indireta de Tancredo Neves, arranjo este herdado pela presidência de José Sarney. Como o prolongamento do acordo com o Clube de Paris dependia do beneplácito do Fundo Monetário Internacional, o qual cobrava do primeiro governo da Nova República uma "revisão do programa brasileiro de ajustamento econômico-financeiro",[4] não ocorreu o acordo traçado em 1984, pois o governo Sarney negava-se a firmar acordo "que implicasse em uma política econômica recessiva".[5] Quando saiu o 1º Plano Nacional de Desenvolvimento da Nova República de 1985 (PND/NR), mais um "plano de ajustamento das contas governamentais" do que um plano de "investimento público" ou de "diretrizes para o investimento privado",[6] ele foi seguido do Plano de Metas de 1986, no qual já transparece o reconhecimento governamental da injustiça do modelo de desenvolvimento econômico herdado do período ditatorial, daí o projeto de um Fundo Nacional de Desenvolvimento, pelo qual "os indivíduos com maior poder aquisitivo serão responsáveis por uma parcela maior do esforço comum de poupança".[7] Esse seria o primeiro plano de investimento em infra-estrutura que tentaria contornar a situação de "crise fiscal" gerada pela estatização da dívida privada contraída no período 1974-82, sem sucesso, entretanto. O acordo com o Clube de Paris viria à tona em 1986, mas dessa vez já contando com uma importante reforma do aparelho estatal, primeiro passo que derivaria em ampla reforma na década seguinte. O governo brasileiro instituíra o Departamento da Dívida Externa (DEDIV) dentro do Banco Central, com a montagem de um grupo especial de técnicos para manter as relações externas de renegociação da dívida, quando se deu oportunidade para o surgimento de um núcleo forte de reformadores do Estado com poderes "trans-setoriais" de ajuste das contas nacionais em função da renegociação do pagamento da dívida externa.[8] Estavam criadas as bases para o exercício do poder do setor monetário da equipe econômica sobre toda a política econômica, bem como, por extensão, sobre todo o governo, no que toca suas funções de investimento. Deve-se atentar especialmente para o fato de que tais condições não decorreram simplesmente de "grande força política" dos membros do DEDIV ou do Banco Central, contra "pouca força política" dos membros dos outros setores do Governo: as condições estavam engendradas nos próprios termos jurídicos dos contratos de renegociação da dívida externa estabelecidos desde 1983 pelo Estado Brasileiro, nos quais se previa o recurso à arbitragem como meio de ajuste entre um acordo e outro da dívida que estivesse em nome da República Federativa do Brasil, e o tribunal de Nova Iorque e Londres para o ajuste das dívidas que estivessem em nome do Banco Central. As contínuas tentativas de transferir para o nome da República Federativa do Brasil as renegociações dos acordos do Banco Central foram sempre negadas pelo Bank Advisory Committee, ou seja, o recurso à arbitragem, processo político entre nações, era preterido em função da relação entre bancos, dado que era o Banco Central o depositário do capital adquirido no mercado mundial de capitais. O próprio desenvolvimento interno das relações entre Banco Central, Governo e bancos nacionais ficava condicionado pelas relações externas da renegociação da dívida, por sua vez determinadas por aqueles que detinham a hegemonia do processo de negociação da dívida, os bancos privados internacionais. Considerando a dívida impagável após o fracasso do Plano Cruzado, o governo brasileiro decretou a moratória da dívida externa em 1987, cessando o envio do pagamento dos juros ao exterior. Antes que uma bravata "nacionalista", foi uma interrupção brusca das renegociações, necessária, todavia, para aqueles que "preparavam o terreno" interno para as reformas necessárias ao ajuste final. No ano seguinte, enquanto era aprovada a nova Constituição da República, o Governo lançava seu "programa de ajuste e modernização do país para o biênio 1988-1989".[9] Com esse programa, o governo dava o sinal desejado pela comunidade financeira internacional credora de sua dívida de que estava comprometido, internamente, a fazer os ajustes necessários à liquidação de capital para servir a dívida externa. Estabelecia o programa o "combate ao déficit público", a "modernização e liberação da economia", o "atendimento das necessidades sociais básicas do país", e a "normalização das relações com a comunidade financeira internacional". Esta não pôde ser atingida imediatamente dada a crise interna que forçou o governo a rever os acordos externos: a inflação anual em 1988 foi de 934%.[10] Após 1990, o novo governo introduziu a figura jurídica da "securitização" da dívida, isto é, a segurança aos credores de que o Estado honraria as dívidas nacionais era lastreada em Bônus do Tesouro Nacional de Longo Prazo, 45 anos em média, não sujeitos ao pagamento de imposto de renda, e pelos quais buscava-se atenuar as flutuações de curto prazo dos juros corretores dos acordos. O governo oferecia ainda mais uma garantia que somente seria aceita anos mais tarde, que foi a capacidade fiscal do Estado como garantia do pagamento, recorrendo para tanto à "federalização" da dívida externa pública, ou seja, as dívidas externas dos poderes públicos estaduais e municipais passavam ao nome da União, e essa dívida permanecia daí em diante como dívida interna entre poderes públicos. Igualmente, a dívida em nome do Banco Central passou para a União. Em 1989, a dívida pública já alcançava 90% de toda a dívida externa.[11] Para atingir a garantia de pagamento através da capacidade fiscal do Estado, o governo introduziu um superávit operacional de seu Orçamento de 1,2% já em 1990, "revertendo uma longa história de déficits operacionais".[12] As negociações com o Bank Advisory Committee puderam ser retomadas em 1992, com o Plano Brasileiro de Financiamento, levado a acordo definitivo com 96,22% dos credores em dezembro de 1993, através da emissão de seis Bônus de Longo Prazo pelos quais trocou-se a dívida pública, "alongando" o perfil da dívida.[13] E assim, após a finalização da renegociação da dívida com a "troca" dos papéis da dívida externa, "trocaram-se" em seguida os "papéis" das figuras políticas envolvidas na renegociação, conferindo-se-lhes então a responsabilidade de encetar as renegociações internas.[14] O governo já preparara o terreno para a sua ação, e nomeara o programa de ajuste interno em 1990, não sem algum revanchismo, novamente de PND, desta vez Programa Nacional de Desestatização.
Em agosto de 1993, após a renúncia no ano anterior do Presidente Fernando Collor baixo os protestos contra as medidas extremas de seu plano de financiamento do pagamento da dívida, o DEDIV já estava sob o comando de André Lara Resende, cujo chefe, Pedro Malan, passara ao Banco Central, ambos nomeados pelo ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso. A reforma do Estado começara em 1990 com a criação do Programa Nacional de Desestatização, e em 1993 o programa seguia no mandato do vice-presidente Itamar Franco, mantendo o mote sempre-vivo das políticas econômicas acima de tudo: o combate à inflação.[15] Seria para combater a inflação que o Ministério da Fazenda teria se empenhado em "obter no Congresso leis que permitissem cortar gastos, elevar impostos e reduzir a rigidez do Orçamento, desvinculando receitas de gastos predeterminados".[16] Essa rigidez era na opinião de Cardoso "incompatível com a boa administração do gasto público".[17] A relação entre controle do gasto público e controle da inflação estava baseada no ideário do Ministério da Fazenda após 1993, pelo qual considerava que "não apenas os bancos, mas também o governo ganhava com a inflação",[18] pois "sem inflação as contas públicas, em vez de exibirem falsos superávits operacionais, mostrariam na verdade o vermelho em que se encontravam".[19] Para reordenar o gasto público, o resultado obtido daquele empenho da equipe econômica no Congresso foi o encaminhamento de reforma da Constituição para a criação do Fundo Social de Emergência (FSE), que tinha como objetivo aumentar os recursos estatais na mão da equipe econômica do governo,[20] através da desobrigação de gastos setoriais determinados pela Constituição, apesar de a lei ainda não ter completado nem os seus primeiros cinco anos para sua primeira revisão, programada para outubro de 1993.[21] Essa pressa não impediu que deputados e senadores conferissem poderes orçamentários excepcionais ao governo, confirmada a aprovação do FSE em 9 de fevereiro de 1994, a tempo de se o aplicar ao orçamento daquele ano. Com os recursos que antes estavam vinculados a gastos específicos agora no caixa comum do governo, eles podiam ser expendidos pela equipe econômica para "amortizar dívidas ou para financiar programas sociais",[22] e dessa forma controlar o gasto público. Além das alterações da ainda nova Constituição, com o que visava controlar o gasto público, a equipe econômica tinha em sua outra frente de ação o combate à inflação, com o que buscava racionalizar o gasto privado. Em 1993 a taxa de inflação chegou a 2.490% a.a., temendo-se para o próximo ano um índice superior a 3.000%: o primeiro passo da equipe econômica nessa frente seria, logo, estabelecer o diagnóstico da causa desses índices. Para os técnicos consultados pelo ministro da Fazenda, o crescimento contínuo da taxa de inflação seria devido ao comportamento psicológico da sociedade, que mantinha expectativa de inflação futura dada a taxa de inflação registrada no presente. Por esse raciocínio, a inflação manteria-se em ascensão porque o mercado reajustava seus preços prevendo que seus custos também seriam reajustados no mês seguinte, independentemente de alguma causa que não esse hábito "psicológico" de conviver com a inflação. Por isso a inflação foi chamada de "inercial", porque seu mecanismo alimentador estaria na indexação dos preços, isto é, na interdependência pré-fixada entre os preços, e não na permanência de capacidade ociosa dentro das unidades produtivas, como interpretara anteriormente Rangel. Bresser-Pereira e Nakano chamaram-na inicialmente de inflação "autônoma", já querendo dizer o mesmo. Partiram seu raciocínio da "estagflação", a situação econômica em que se conjugavam a inflação com a estagnação do crescimento econômico, quadro por eles descrito no início de 1984. Segundo sua abordagem, "se um aumento de margens ou um aumento de salário real acima da produtividade elevarem o patamar da inflação, em seguida não são necessários novos aumentos para que aquele patamar seja mantido. A inflação mantém-se naquele nível independentemente de haver pressão de demanda, e pode conviver com elevados índices de desemprego. Temos portanto uma situação de estagflação que também poderia ser chamada de 'inflação autônoma'. O fator mantenedor do patamar da inflação por excelência é o conflito distributivo", pois "[...] cada empresa e cada trabalhador ou grupo de trabalhadores estará repassando seu aumento de custos para seus preços".[23] Os próprios economistas reconhecem que essa indexação descrita, seja ela formal ou informal, não acelera a inflação, isto é, não a causa, mas a mantém, e que "as variações efetivas de custos são sempre o fator fundamental" da inflação, "inclusive porque determinam as expectativas".[24] Embora reconhecendo esse fato, simplesmente essa corrente de economistas passará a omiti-lo de suas análises do processo inflacionário daí por diante, para focar nos "efeitos deletérios" da convivência com a inflação, vale dizer, deletérios para os capitalistas e não para o sistema como um todo. Assim, a inflação estrutural determinaria as expectativas que, porém, poderiam ser em seguida "distorcidas" e, portanto, deixar de refletir a inflação de custos estrutural, a "inflação real". Isso aconteceria se as expectativas fossem afetadas por outros mecanismos, vale dizer, os mecanismos políticos criados para conviver com a inflação estrutural: a correção monetária e os dissídios salariais. Para esses economistas, "só haverá uma aceleração ou desaceleração se a correção dos preços, dos salários, da taxa de câmbio ou da taxa de juros for maior ou menor do que a taxa de inflação relativa ao patamar vigente ou se as correções tiverem a sua periodicidade aumentada ou diminuída. Este fenômeno poderá ocorrer em função de um erro quanto às expectativas em relação à inflação futura".[25] Ou seja, mesmo reconhecendo que o âmago da inflação fosse estrutural, para esses economistas a superfície aparente da inflação não representaria o "real" da economia, pois ele estaria distorcido pela relação política, vale dizer, extra-econômica, entre trabalhadores e patrões. Na opinião dos teóricosda "inflação inercial", esse problema "de segunda ordem", responsável pela manutenção e chancela da inflação, deveria ser enfrentado para que se expusesse a face real da economia. Logo, a aplicação dessa teoriaimplicava na destruição dos mecanismos de correção pactuados pelo Estado desenvolvimentista desde 1930.[26] De início, o combate à inflação ficaria restrito ao dissídio salarial, com o processo inflacionário transparecendo à sociedade como se fosse um desentendimento da relação entre sindicato operário e sindicato patronal mediada pelo Estado, e não como componente estrutural do desenvolvimento da economia brasileira. Essa interpretação dos teóricos da "inflação inercial" notadamente responsabilizava os trabalhadores por receberem renda "superior" à sua produtividade. Dessa maneira, ainda que Bresser-Pereira e Nakano tivessem posto a inflação de custos como "fator fundamental", abriam caminho para a emergência das teses que buscavam penalizar os trabalhadores pela reiteração do processo inflacionário, em um período histórico no qual os sindicatos "autênticos" enfrentavam o governo e a inflação nos dissídios salariais, razão mais do que suficiente para incutir essas teses entre os economistas. Essa interpretação da inflação brasileira havia sido criticada por Rangel meio ano antes, quando observou que "chega a ser de um ridículo atroz responsabilizar e penalizar os operários pela eventual queda da produtividade do seu trabalho. [...] O que fica patente é que esta 'razão de lobo' está sendo argüida simplesmente para comprar a simpatia do patronato, o qual, afinal, é também vítima desta tragicomédia", dado que a causa da inflação, para Rangel, não estava no conflito distributivo, mas na permanência de capacidade ociosa interna à empresa, forçando a diminuição da produtividade bruta, enquanto "a demanda efetiva de seu produto determina-se externamente à empresa", isto é, no mercado, fora do alcance de cada empresário.[27] Entretanto, teria sido o mesmo Rangel quem caracterizara aquele pacto entre classes para regulação extra-econômica implícito no Estado após 1930 como um arranjo sui generis característico da terceira dualidade brasileira, na qual o Estado Nacional estaria comandado por uma aliança de classes, na qual o sócio maior era o latifúndio feudal, representado por Getúlio Vargas, e o sócio menor era a burguesia industrial, ainda desprovida de um programa político próprio.Sem esse arranjo, um aparente "passo atrás", como chamou, não se teria dado oportunidade para o surgimento da indústria nacional que, em seu desenvolvimento, levaria à superação desse pacto em um "passo adiante" e, com isso, à reforma daquele Estado criado em 1930.[28] Para os planejadores-economistas da década de 1980, adeptos de sua teoria, havia chegado o momento desse "passo à frente". Os partidos políticos igualmente egressos dessa teoria daí em diante passaram a disputar o título de "quem irá acabar com a Era Vargas", o que seria inclusive tornado ponto programático do Partido da Social Democracia Brasileira. E quando esse partido se fez governo, ordenou uma reforma do Estado que alteraria a relação entre Estado e sociedade desde o primeiro, removendo as coerções extra-econômicas estranhas ao que entendiam como o real desenvolvimento de relações capitalistas de produção, através do reordenamento dos meios econômicos ao alcance de suas políticas, usando para isso o monopólio estatal de fixação do valor da moeda. Chamado de "ajuste monetário", o Plano FHC enfrentou a economia inflacionada pela indexação de preços com a indexação de mais um deles, o preço da inflação da moeda, criando uma nova moeda de referência, que de um dia para o outro retirou a inflação dos preços dos produtos: depois de 1° de julho de 1994, a inflação "era história".[29]
O ajuste macroeconômico posicionou os fatores produtivos na ordem da remuneração do dinheiro em conta como principal meta da política econômica, dado o diagnóstico de emissão inflacionária de meios de pagamento como causa e efeito do endividamento do Estado e que por fim acarretava em insolvência das suas dívidas "dolarizadas" perante a "comunidade financeira internacional". Condicionaram-se os fatores ociosos da atividade produtiva a "honrar as dívidas" assumidas no período anterior. Na interpretação da história de longo curso, "liquidava-se" na década de 1990 o capital formado no período anterior de crescimento econômico na forma do patrimônio construído dentro da propriedade do Estado e dentro do alcance da política monetária de seu governo. Acaso teria sido tudo aquilo feito em vão? Como o Governo do Estado Nacional se responsabilizara no pagamento da dívida —inclusive estatizando a dívida externa privada—, teve de drenar para si os recursos necessários, ao que concorreram as privatizações do patrimônio estatal e a geração de novas receitas fiscais: enquanto de 1991 a 2002 era vendido patrimônio estatal 13 vezes mais valioso do que o PIB acumulado no período,[30] a carga tributária saltou 41,29% em dez anos, de 25,38% do PIB em 1992 para 35,86% do PIB em 2002. Esse mesmo PIB cresceu 33,47% entre 1992 e 2002 (o PIB per capita cresceu apenas 14,67% no mesmo período, de 2,06%a.a. na média de 1983-1992 até 2,94%a.a. na média de 1993-2002,[31] uma variação relativa de 42,72% em dez anos), significando um aumento do tamanho do Estado perante o povo, e diminuição de seu patrimônio fixo ao par da diminuição dos patrimônios privados. De maneira alguma tal manobra poderia ser entendida como destinada a estabelecer um "Estado Mínimo". Os bônus pelos quais os credores externos trocaram a dívida pública, puderam ser usados como capital na compra de patrimônio nacional em liquidação, dentro do Programa Nacional de Desestatização, de acordo com a Resolução nº 2.203 e circular nº 2.623 do Conselho Monetário Nacional, de 28 de setembro de 1995.[32] O ajuste rebaixou o antigo nível de emprego humano (considerado então como "irreal") na atividade produtiva, que para isso adequou a quantidade de material industrial instalado, e conteve-se em seu acesso ao mercado no limite da "pressão inflacionária", isto é, não deixando em absoluto de oferecer suas mercadorias para não surtir "inflação por demanda", nem oferecendo "mercadoria demais" para não desgastar o caríssimo dinheiro investido na produção. A capacidade ociosa foi tratada pelos adeptos das teorias rangelianas ao inverso do que prognosticara seu mentor quando em vida. Ou seja, não pela utilização da capacidade ociosa para suprir demanda crescentemente estimulada, mas desestimulando a demanda e removendo a capacidade ociosa de dentro das unidades produtivas, forçando a desmobilização da força de trabalho —a conseqüência mais nítida desse processo. A recessão foi forçada, planejada e executada pelo Governo do Estado, o mesmo em que Rangel uma vez confiou que faria o inverso, que usaria seu poder para estimular o uso da capacidade ociosa, vale dizer, dar prosseguimento ao desenvolvimento das forças produtivas nacionais. O Estado Nacional não cumpriu essa tarefa rangeliana porque as relações internas de produção, nele consubstanciadas, bloquearam esse desejado desenvolvimento das forças produtivas, o que deformou a economia em proveito da manutenção da ordem política, que se supunha o desenvolvimento daquelas mesmas forças produtivas poria caduca. Em termos rangelianos, portanto, a quarta dualidade brasileira que se estabeleceria daí em diante foi obstada pela anteposição política das classes associadas no Estado Nacional, que usaram de seu poder para impedir o pleno desenvolvimento das forças produtivas que conduziriam a sociedade a novo pacto entre novas classes, ou seja, a nova dualidade. A economia, por ser cíclica, devolveu assim a pressão aliviada no preço do dinheiro (taxa de câmbio) através da pressão no custo do dinheiro (taxa de juro), na pressão do desemprego e na pressão dos "gargalos" na infra-estrutura. Do ponto de vista estrutural, portanto, houve um "recalque": sem que se mexesse no câmbio, a pressão inflacionária inflava diretamente a taxa básica de juro, a SELIC, que variou de 25% a 54% no período de 1994-2002, resultando em média de 26,9%.[33] Essa ligação direta entre baixa taxa de inflação e alta taxa básica de juro transcorreu sem incomodar a taxa de câmbio até 1998, quando a pressão do comércio exterior sobre o câmbio tornava a paridade com o dólar uma malsinada convenção que pedia revisão, segundo a equipe econômica.[34] A pressão que a inflação transferia para a taxa de câmbio não era notada pelo povo porque o câmbio fixo a "maquiava" por motivos eleitorais, aparecendo "realmente" no dia 13 de janeiro de 1999, após a reeleição.[35] Uma vez rompida a ilusão do "câmbio de primeiro mundo", o novo "inimigo nº 1 nacional" deixou de ser a inflação: passou a ser a taxa de juro. Economistas hoje propõem o déficit zero em conta corrente estatal para "solucionar" a taxa de juro, ou seja, um aperto ainda mais fundo do ajuste, sem buscar resolver as causas dos déficits. Logo, é imperativo que se faça um plano de crescimento econômico para garantir a sobrevivência do sistema, e que consiga concomitantemente atingir as metas dos parâmetros da política econômica (meta de inflação, meta de taxa de juro, apreciação do câmbio) pela preocupação com os outros fatores que os determinam, quais sejam: o emprego do trabalho humano e a transformação do capital financeiro em capital fixo na forma de material industrial. Deve-se buscar aliviar as pressões do desemprego e dos gargalos infra-estruturais geradas no "ajuste monetário" através da ampliação do uso da infra-estrutura econômica que incorpore os trabalhadores desempregados, aumente a massa salarial, e amplie o mercado consumidor, com isso aumentando a demanda para que se possibilite a diminuição da taxa de juro. Essa ordem dos fatores altera o produto, e o incorreto ordenamento dado pela visão "monetarista" tem centrada a ação na regulação da taxa de juro, querendo que esta seja "politicamente" rebaixada para que possibilite o investimento na produção. Ora, essa "expectativa política" substitui o planejamento por um apanhado de "lugares comuns" que, de tanto serem repetidos por todos os políticos, esperam os mesmos que eles sejam realizados, como que por um "golpe de mestre". Com a abdicação do planejamento em troca da expectativa política, os políticos deixam de ter sua eficaz intervenção na economia, prova cabal do fim do ciclo do pacto de poder que comandou o Estado Nacional no século XX.Os países credores da dívida externa brasileira integrantes do Clube de Paris eram, por ordem alfabética: Áustria, Bélgica, Canadá, Espanha, Estados Unidos, França, Itália, Noruega, Portugal, Holanda, Inglaterra, Alemanha Ocidental, Suécia e Suíça. Além desses, eram observadores os organismos internacionais: Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Internacional para a Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD), Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), e Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), todas organizações originadas da Organização das Nações Unidas (ONU). Cerqueira estima em US$3 bilhões o total dos empréstimos emergenciais em 1982, sendo US$1 bilhão das fontes oficiais do Clube de Paris, e US$ 2 bilhões dos bancos privados. CERQUEIRA, 1997. O Liaison Group mudou de nome e cresceu de importância, transformado "no principal veículo de contatos com a comunidade financeira internacional". CERQUEIRA, 1997, p. 28. Integravam o novo Bank Advisory Committee for Brazil os bancos estrangeiros, por ordem alfabética: Arab Banking Corporation – Bahrain (Barein), Bank of America NT & SA – San Francisco (EU), Bank of Montreal (Canadá), Bank of Tokyo (Japão), Bankers Trust Co. – New York (EU), Chemical Bank – New York (EU), Citibank – New York (EU), Credit Lyonnais – Paris (França), Deutsch Bank AG – Frankfurt (Alemanha Ocidental), Lloyds Bank Inrenational – London (Inglaterra), Manufacturers Hanover Trust Co. – New York (EU), Morgan Guaranty Trust Co. – New York (EU), The Chase Manhattan Bank – New York (EU), Union Bank of Switzerland – Zurich (Suíça). A presidência era do Citibank. CERQUEIRA, 1997, p. 29. CERQUEIRA, 1997, p. 36. CERQUEIRA, 1997, p. 37. BACHA, 1986, p. 128. "Trata-se apenas de um empréstimo que não reduz a riqueza do setor privado, uma vez que será devolvido no futuro, com rendimentos compatíveis com outros tipos de rendimentos financeiros". BACHA, n°1, 1986, p. 130. Para Cerqueira, "a partir daquela data [final de 1985]", o DEDIV "passou a exercer o papel de componente técnico central do sistema, objetivando, a partir de ações coordenadas com outros setores de governo, viabilizar os acordos de reestruturação da dívida externa brasileira junto à comunidade financeira internacional e junto aos credores oficiais no âmbito do Clube de Paris, tanto em suas etapas negociais, quanto no curso de sua execução". CERQUEIRA, 1997, p. 38, grifos meus. CERQUEIRA, 1997, p. 44. CERQUEIRA, 1997, p. 61. CERQUEIRA, 1997, p. 63. CERQUEIRA, 1997, p. 71. De todos os credores, apenas dois, o Banco do Brasil e a família Dart, dos EU, não aceitaram trocar seus créditos por bônus, de maneira que o Banco Central teve de estabelecer acordos particulares com esses credores na corte de Nova Iorque, no valor total de US$3 bilhões. CERQUEIRA, 1997, p. 92. Teriam sido renegociados 70 bilhões de dólares, dos quais 50 bilhões seriam com os credores privados, e o restante com o Clube de Paris. Fernando Henrique Cardoso, nomeado ministro da Fazenda em maio de 1993, começaria a montagem de sua equipe econômica por Pedro Malan que, nas palavras de Cardoso, "como negociador da dívida, sabia até mais do que eu o tamanho do problema que a nova equipe econômica deveria enfrentar". CARDOSO, Fernando Henrique. A arte da política: a história que vivi. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, p. 138. "Precisávamos enfrentar, como relembrei anteriormente neste livro, os três grandes problemas do país: a inflação, a inflação e a inflação". CARDOSO, 2006, p. 138. CARDOSO, 2006, p. 145. CARDOSO, 2006, p. 151. Rangel descrevera o processo em 1963: "[...] mas o de que não resta dúvida é que a repetição dos ciclos inflacionários acaba por converter a receita inflacionária em uma fonte ordinária de recursos para o Estado [...]". RANGEL, Ignácio. "A inflação brasileira", em Obras reunidas. Rio de Janeiro: Editora Contraponto, 2005, v.1, p. 565. Contudo, advertia também para o erro de se presumir que essa fosse a causa da inflação, ou seu principal ponto de apoio: "Na verdade, mesmo que o Estado encontrasse outros meios de cobrir suas necessidades financeiras, a inflação deveria persistir, como estímulo indispensável ao dispêndio global, e portanto, como mecanismo de defesa contra a depressão". RANGEL, Ignácio. "A inflação brasileira". In: RANGEL, 2005, p. 602. CARDOSO, 2006, p. 144. Nas outras frentes de ação da equipe, "[...]travava-se uma guerra para submeter ao controle do Ministério da Fazenda as finanças das empresas estatais". CARDOSO, 2006, p. 144. Confirma-no Cardoso, em cujas memórias lê-se: "A inflação poderia ultrapassar, se anualizada nos momentos de pico, os 3000% ao ano. E todos a esperar a revisão constitucional automática, prevista no texto da Carta de 1988 para cinco anos após o início de sua vigência, que deveria começar também em outubro de 1993 [junto com a CPI dos Anões do Orçamento]". CARDOSO, 2006, p. 141. CARDOSO, 2006, p. 152. Cardoso explica a essência dessa movimentação de seu ministério no Congresso: "Houve críticas à designação Fundo 'Social' de Emergência, quando seu objetivo na verdade nada teria de social: tratava-se simplesmente de desengessar um pouco o Orçamento para o governo poder dirigir mais recursos para seus programas, fossem eles sociais ou não. A verdade, admito, é que o denominamos 'Social' para facilitar sua aprovação pelo Congresso". CARDOSO, 2006, p. 152. BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos; NAKANO, Yoshiaki. "Fatores aceleradores, mantenedores e sancionadores da inflação". Revista de Economia Política, v. 4, nº 1, janeiro a março de 1984, p.10. BRESSER-PEREIRA; NAKANO, 1984, p. 10, grifos meus. Os passos principais do estabelecimento dessa regulação extra-econômica foram em 1930: intervenção federal nos Estados; 1943: Consolidação das Leis do Trabalho; 1957: inclusão da diferença cambial na tarifa de serviços de utilidade pública de eletricidade (estabelecendo na prática a correção monetária); 1964: correção monetária em forma de lei. RANGEL, Ignácio. "Esta crise não se administra".... Revista de Economia Política, v. 3, nº 3, julho a setembro de 1983. Tratando da recuperação da economia brasileira após a Grande Depressão Mundial, diz Rangel: "Essa recuperação esteve relacionada com o aumento dos investimentos na substituição industrial de importações. Entretanto, para isso, foi mister criar condições financeiras e jurídicas novas, estruturadas respectivamente em torno da reserva de mercado e do direito trabalhista. A criação dessas condições foi a essência das lutas que sacudiram a sociedade brasileira no período. Era preciso assegurar rentabilidade às novas empresas, o que somente seria possível pela proteção contra a competição estrangeira, e, simultaneamente, criar relações de trabalho que possibilitassem a operação regular dessas empresas, nos marcos de uma sociedade ainda dominada pelas relações feudais de produção. O direito à estabilidade no emprego, tendente a criar entre operários e patrões laços duradouros, que substituíssem as relações de dependência pessoal reinantes no latifúndio, foi o cerne da reforma jurídica. A reserva de mercado, sob diversas formas, foi a essência da reforma econômica". RANGEL, Ignácio. "A inflação brasileira". In: RANGEL, 2005, p. 586-7. [29] Fernando Henrique Cardoso chamou seu Plano FHC de "medicação homeopática", pois tratou o mal da indexação dos preços com o próprio veneno da indexação da moeda. Como toda terapia homeopática, portanto, acredita que a economia brasileira encontrou seu "remédio de fundo", e que deve portanto manter-se fiel a ele. Assuma-se a cifra de US$105 bilhões de receitas advindas do PND de 1991 até 2002, incluindo dívidas transferidas, conforme divulgação do BNDES em <http://www.bndes.gov.br/privatizacao/resultados/already.asp>, acesso em 30.jan.07. Tome-se também os dados do PIB acumulado nesse período, de 15,5 bilhões de reais segundo o Ipea. "PIB (preços 2005) - R$ de 2004(mil) - IPEA - Gac_PIB"[Série estimada a partir do valor do PIB nominal de 2004 (Novo Sistema de Contas Nacionais do IBGE) e a taxa de variação real do PIB anual (IBGE)]. Sendo o dólar cotado na média do período a 1,95 reais de 2000 (BACEN, disponível em <http://www5.bcb.gov.br/pec/taxas/port/ptaxnpesq.asp?id=txcotacao> , temos que, no período de 1991 a 2002, o Governo do Estado vendeu patrimônio equivalente a 204,75 bilhões de reais, ou mais de 13 vezes o PIB do período. Cálculos com base em dados do Ipea, Bacen e Receita Federal. CERQUEIRA, 1997, p. 87. BACEN, disponível em <http://www.bcb.gov.br/?SELICMES>, acesso em 30.jan.07. Ao comentar os episódios da "crise asiática" de 1997, o ex-presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, conta como o Governo se defendeu da onda especulativa no dia 30 de outubro de 1997, quando "dobramos a taxa Selic, que passou de 22% para 44% ao ano". CARDOSO, 2006, p. 384. "Queríamos alterar algo no câmbio. Repito o registrado [em anotações pessoais de 10.12.2007]:'Vale mais a pena manter a taxa de juros um pouco mais apertada e mexer no câmbio, que o câmbio é um problema'. Gustavo [Franco, presidente do Banco Central em fins de 1997]não concordava que constituísse um problema para as exportações, mas sustentava que deveríamos alargar a banda de variação por causa do volume das importações, que seguia elevado". CARDOSO, 2006, p. 388. Falando da recomposição súbita de reservas após o "fim" da crise asiática na virada de 1997 para 1998, Cardoso avalia que "talvez tenha sido que nos levou a perder oportunidades para rever a questão cambial no primeiro quadrimestre de 1998, quando eventualmente teria sido possível fazê-lo". CARDOSO, 2006, p. 388, grifos meus. Essa passagem é importante, atentando-se para o trecho grifado, porque em seguida vieram as eleições de 1998, quando "Nos meses seguintes, com eleições à vista, aumentou a resistência à alteração de rumos. Não por causa de 'populismo cambial' para assegurar vitória eleitoral e sim pelo temor de que o nervosismo político-eleitoral contagiasse os mercados: modificar regras cambiais a essa altura poderia provocar disparada de preços. Em uma economia ainda parcialmente indexada e com viva memória de décadas de inflação, o temor de uma recaída no inferno da hiperinflação nos atormentava. Quedamo-nos vitoriosos e imóveis". CARDOSO, 2006, p. 388.
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