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Dos subsetores ao sistema

O Partido da ação prospectiva deve ser projetar a saída da atual situação dos transportes estanques em subsetores do Estado Nacional para uma futura situação de sistema multimodal de transportes. Isso significará a integração dos diversos modos de transporte já atuantes no território nacional, e mais: significará também a integração desse sistema nacional com os sistemas de transporte nos territórios dos Estados vizinhos ao brasileiro, sem o que a infra-estrutura de transportes brasileira não poderá funcionar como sistema e estará fadada a perecer à margem do comércio mundial.

Foi visto na Parte Retrospectiva como, no princípio e razão-de-ser do assentamento da infra-estrutura de transportes no território do Estado brasileiro, estava o direcionamento da produção para o escoamento ao exterior. Linhas de ferro que nasciam em um ponto estratégico do interior, e iam ter com o oceano na barra de um porto, o qual, via de regra, também situava-se na barra de um rio exorréico.

No caso brasileiro, foram sucessivas linhas "paralelas" que perfaziam a mesma jornada, de maneira que, quando o Governo do Estado quis fazer disso um conjunto nacional, teve em suas mãos uma plêiade de linhas desconexas, posto que concorrentes, que começavam "em lugar nenhum" até chegarem a "algum lugar" no litoral, e isso lhe pareceu o maior entrave à sua integração em sistema nacional.

A infra-estrutura de transportes desenvolveu-se, portanto, voltada para fora, como argumentaram os dualistas. Essa foi e é a principal característica do traçado das linhas férreas, e o é ao ponto dos políticos atuais não poderem nem aceitar a idéia de uma ferrovia que não chegue em um porto![1]

Mas, se por um lado essa característica do desenvolvimento das infra-estruturas de transporte nas ex-colônias sul-americanas da Europa aparece como uma desvantagem do ponto de vista nacional —para qualquer Estado sul-americano à semelhança do brasileiro[2]—, por outro lado, do ponto de vista internacional, do continente, toda a infra-estrutura de transportes está quase pronta para que unamos uma linha que parte de "lugar nenhum" no território do Estado brasileiro a outra que igualmente parta de "lugar nenhum" no território de um Estado vizinho, digamos o argentino ou o boliviano, e assim unamos um porto ao outro, uma ponta à outra do continente, um oceano ao outro.

Não está muito longe essa possibilidade transcontinental, e ela é a saída para se lograr a integração dessa infra-estrutura "por dentro", como queriam os cepalinos, a partir da base suposta que já temos hoje herdada do período anterior.

Logo, deve ser essa a orientação fundamental a se dar ao novo ciclo de desenvolvimento: do ponto de vista das unidades federativas, transição para a progressiva nacionalização da infra-estrutura econômica; do ponto de vista do Estado Nacional, transição para a progressiva internacionalização das relações econômicas; do ponto de vista da Comunidade Sul-americana de Nações, transição para a progressiva integração de sua infra-estrutura econômica, aí incluído o sistema continental de transportes.

O horizonte de sucesso desse plano não está definido, posto que depende do trabalho coletivo de pessoas dispersas por todo o continente, mas o caminho até lá pode ser traçado desde o ponto em que nos encontramos. E esse caminho passará, necessariamente, pelo planejamento do desenvolvimento da economia brasileira, e nessa planejamento deverá constar a integração da infra-estrutura de transportes através da multimodalidade, a qual só poderá ser alcançada em grau satisfatório para as tarefas que se lhe reservam se for implementado um Programa que tome medidas de reforma do arcabouço jurídico que regula o setor e que dêem oportunidade ao nascimento de empresas de logística de novo tipo.

Para definir qual será essa reforma jurídica que pode ser implementada desde já, temos de nos suprir dos exemplos históricos a que temos acesso. Neste caso, parece-me que as leis européias acerca do uso da infra-estrutura ferroviária dos Estados-membros da União Européia guardam a resposta para essa questão que começamos a formular.

A ver em seguida aonde ela poderá nos levar.

 

 

Comentários sobre as leis européias

Em corrente processo de unificação, os Estados no continente europeu vêm trabalhando juridicamente para vencer as fronteiras nacionais que impedem o desenvolvimento de cada um e do conjunto deles na União Européia. À semelhança disso que fazem os Estados europeus, os Estados sul-americanos encontram-se tateando na mesma direção, mas ainda carecem de leis comuns que assegurem a estabilidade do processo.

Esses Estados sul-americanos poderiam muito bem esmerar-se nas leis que os europeus historicamente desenvolveram no setor de transportes e que hoje lhes servem como parâmetro de sua unificação. O exemplo que mais cabe ao nosso problema presente de uso da infra-estrutura de transportes é o direito de acesso constante das legislações da maioria dos Estados-membros europeus.

Direito de acesso significa que aquela infra-estrutura de transporte que foi construída com os esforços nacionais empreendidos durante os séculos XIX e XX deverá ser acessível a quem dela puder fazer bom uso, ficando a critério do Estado determinar o que seja esse "bom uso".

Dessa maneira, considerando o direito de acesso constante na legislação dos Estados-membros, foi que a União Européia desenvolveu a legislação do Acesso Aberto ferroviário,[3] pelo qual a infra-estrutura ferroviária (via permanente e instalações de apoio ao longo dela) deve ser acessível a mais de uma empresa ferroviária, independente do seu País de origem. Ou seja, é proibido o monopólio dessa infra-estrutura.

O mais avançado e antigo caso de Acesso Aberto é uma aplicação nacional, na Suíça,[4] onde mais de uma empresa ferroviária tem direito ao acesso à mesma infra-estrutura, mantida por outras empresas concessionárias da sua construção e exploração, cuja concessão dura no máximo por 50 anos. A regulação jurídica desses atores, uma vez estabelecida a lei desde 1956, ficou a cargo de um Conselho Federal, que editou várias ordenanças para orientar essas relações.

Um caso similar, mas com uma sensível variação, é o da legislação sueca, na qual tudo se assemelha à suíça, com a exceção de que a construção e exploração da infra-estrutura é feita por uma empresa estatal.

Porém o caso atual que melhor nos serve de exemplo é o da União Européia, que tem como forma de lei a diretiva de abril de 2001,[5] a qual seguiu as reflexões de diversos técnicos internacionais europeus, consolidadas em julho de 1996, no documento "Livro Branco: uma estratégia para revitalizar os caminhos de ferro comunitários".[6]

Com o Acesso Aberto, o nascente Estado Europeu planeja integrar sua infra-estrutura de transportes para que

"os cidadãos da União, operadores econômicos e autoridades locais e regionais possam se beneficiar plenamente das vantagens advindas do estabelecimento de uma área sem fronteiras internas".[7]

A diretiva determina que "passos devem ser tomados para evitar que Estados-membros adotem novas regras nacionais ou implementem projetos que acentuem a heterogeneidade do sistema atual".[8]

A medida encontrada pelos europeus para lograr esse efeito será embasar o argumento da homogeneização em cima do direito de acesso à infra-estrutura. Conseqüentemente, a diretiva passará a ficar restrita àqueles Estados-membros que tenham esse direito assegurado em suas próprias leis, como é o caso de Áustria, Dinamarca, Finlândia, França, Alemanha, Irlanda, Holanda, Suécia e Reino Unido, e não é o caso de Bélgica, Itália, Luxemburgo, Espanha e Portugal. E será

"para garantir a aplicação efetiva dos direitos de acesso, [que] ela [a Comissão Européia] proporá separar a gestão das infra-estruturas e as operações de transporte em unidades de atividade distintas".[9]

Essa característica aprendida na lei da União Européia é a mais necessária de ser aplicada pelos Estados sul-americanos em um novo programa para a toda a infra-estrutura de transportes, e não apenas para a ferroviária, pois é imprescindível que tratemos igualmente cada um dos subsetores para que, justamente, eles deixem de ser assim divididos e dê-se a transição de "subsetores" para o sistema nacional de transportes, e dele, para o sistema continental de transportes.

Portanto, um Programa que nos leve nessa direção de transição dos subsetores ao sistema continental deverá observar inicialmente uma série de reformas jurídicas que imponham o direito de acesso nessas novas condições ao mercado de transporte.

 

 

Arcabouço jurídico

Tomo o ponto de partida do arcabouço jurídico que cerca o setor de transportes atualmente, escrito na Lei n° 10.233, de 5 de junho de 2001, que dispõe sobre a reestruturação dos transportes aquaviário e terrestre, cria o Conselho Nacional de Integração de Políticas de Transporte (CONIT), a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ) e o Departamento Nacional de Infra-Estrutura de Transportes (DNIT), e dá outras providências. Essa lei é a referência no setor da ampla ação do Governo no seu Programa Nacional de Desestatização (PND), no qual a Rede Ferroviária Federal S.A. foi incluída em 1992 e finalmente extinta em 2007.

O Conselho Nacional de Integração de Políticas de Transporte de 2001 é herdeiro da função do Conselho Nacional de Viação, criado junto com o primeiro Plano Nacional de Viação de 1934. À época, o Plano era, como o Conselho, responsabilizado pelos modos aquático, férreo, de rodagem e aéreo.

Com a evolução dessas indústrias desde 1934 até 2001, o segundo aparecimento da figura legal de um Conselho do setor de transportes aconteceu restrito aos transportes terrestres e aquaviários, respeitando a soberania do Ministério da Defesa e Forças Armadas sobre o espaço aéreo nacional e, portanto, sobre a administração da viação aérea.[10]

Mais ainda, à diferença daquele primeiro Conselho, o novo de 2001 não veio acompanhar um Plano Nacional de Viação, senão coroar o processo de concessão de serviços públicos de transporte a empresas privadas.

Por esses motivos, o Conselho Nacional de Integração de Políticas de Transporte, CONIT, está vinculado diretamente à Presidência da República, e carrega esse nome que demonstra explicitamente o cenário em que foi criado: políticas do setor  "desintegradas" e sem um órgão governamental que o fizesse até então.

Pois não se deve esquecer que entre o início do processo de concessão das empresas públicas do setor, em 1996, (disparado pelas ações ordenadas do PND de 1995) e a data de criação do Conselho em 2001, transcorreu meia década de política de transporte sem existência de órgão talhado para esse modelo de gestão do Estado: o Conselho subordinado à Presidência da República.

Ocorre que o Conselho nunca foi nomeado, e o setor segue até agora acéfalo, sem planejamento. Nesse período foi arrendada a terceiros a maior parte da infra-estrutura pertencente à Rede Ferroviária Federal, contando vias permanentes e direito exclusivo de seu uso, total de 28.000 km, imóveis e material rodante,[11] total de R$ 6 bilhões.

As empresas concessionárias, arrendatárias do patrimônio da RFFSA, operam desde 2001 sob a supervisão da Agência Nacional de Transporte Terrestre, ANTT. Contudo, a situação do mercado de transporte por ferrovia é praticamente o oligopólio de concorrência imperfeita, como demonstrarei adiante. Isso porque cada concessionária é detentora tanto da via permanente, quanto do material rodante e ainda do serviço de frete e transporte. Domina, portanto, todas as etapas e atividades envolvidas na sua rota de transporte.

Mais ainda, quase metade das linhas ferroviárias no território nacional têm essas características acrescidas ainda do interesse da própria concessionária como proprietária da carga transportada, isto é, é prestadora de serviço e cliente ao mesmo tempo.

Essa situação foi criada pelo processo de privatização regionalizante iniciado em 1992 e ordenado e planejado pelo Governo do Estado desde 1995 até 2006, quando foi finalmente concedida a última superintendência regional da RFFSA na forma de empresa ferroviária, a Brasil Ferrovias. Nesse episódio foi repassada a malha da Ferroban, antiga FEPASA, e Novoeste, antiga Noroeste, para o controle da América Latina Logística, ALL, já proprietária de quase toda a rede ao sul da malha paulista.[12]

Essa sobreposição de funções é fato importante na análise do subsetor ferroviário, principalmente quando se a faz à luz dos ensinamentos da União Européia. Portanto, devemos nos questionar se essa situação de fato estaria de acordo com a legislação. Ou antes: seria a legislação adequada a esse cenário gerado antes da sua aprovação em 2001?

Lê-se na Lei n°10.233, no capítulo IV, "dos princípios e diretrizes para os transportes aquaviário e terrestre", seção 2, "das diretrizes gerais", artigo 12, inciso VII, uma das diretrizes e razões de ser da lei:

"reprimir fatos e ações que configurem ou possam configurar competição imperfeita ou infrações da ordem econômica".

Essa não é uma determinação de atribuição específica a nenhum dos órgãos criados pela lei, CONIT, ANTT, ANTAQ e DNIT, objetivados no artigo 1°, incisos I, III, IV e V, respectivamente. Insere-se no objeto da lei referido no mesmo artigo, inciso II:

"dispor sobre a ordenação dos transportes aquaviário e terrestre, nos termos do art. 178 da Constituição Federal, reorganizando o gerenciamento do Sistema Federal de Viação e regulando a prestação de serviços de transporte".

Por essa determinação, de fazer cumprir os termos do art. 178 da Constituição Federal, a Lei transmite, a todos os órgãos comprometidos na política setorial, as diretrizes gerais por que devem nortear-se.

Posta dessa maneira, a atenção ao que manda o inciso VII do art. 12, "reprimir fatos e ações que configurem ou possam configurar competição imperfeita ou infrações da ordem econômica" é tanto de responsabilidade das Agências Nacionais criadas pela lei —ANTT e ANTAQ—, do órgão implementador da política planejada —o DNIT—, quanto do Conselho Nacional de Integração de Políticas de Transporte —o CONIT—, autorizador das políticas planejadas.

Vejamos como essas agências, departamento e conselho, órgãos criados pela Lei de 5 de junho de 2001, articulam-se na hierarquia da União para distinguir a quem cabe o exercício dessa "correção econômica", que interessa diretamente na questão colocada para a evolução do subsetor ferroviário de transporte e de todo o setor.

Lê-se na alínea b, do inciso II do artigo 20, na seção que trata dos objetivos, da instituição e das esferas de atuação, no capítulo VI sobre as agências nacionais (ANTT e ANTAQ), que a agência deve "regular ou supervisionar" as atividades das concessionárias "com vistas a":

"harmonizar, preservado o interesse público, os objetivos dos usuários, das empresas concessionárias, permissionárias, autorizadas e arrendatárias, e de entidades delegadas, arbitrando conflitos de interesses e impedindo situações que configurem competição imperfeita ou infração da ordem econômica".

O teor dessa obrigação é aquele mesmo tratado anteriormente nas diretrizes gerais da Lei, o que reforça a obrigação da agência em obedecer as diretrizes gerais determinadas para o setor, não importando a redundância jurídica em impedimento que o mesmo seja observado também em instância superior, o CONIT no caso. Em verdade, esse inciso II é precedido do I, que diz ser dever da agência:

"implementar, em suas respectivas esferas de atuação, as políticas formuladas pelo Conselho Nacional de Integração de Políticas de Transporte e pelo Ministério dos Transportes, segundo os princípios e diretrizes estabelecidos nesta Lei",

isto é, obedecendo as citadas diretrizes gerais da Lei ao implementar as políticas do setor que são formuladas pelo CONIT, ou pelo Ministério dos Transportes, participante do Conselho.

A Lei segue dizendo como a ANTT tem igualmente a função de subsidiar o CONIT, através do Ministério dos Transportes, com informações e também propostas ou sugestões de medidas a serem tomadas para o setor. Todavia, cabe ao CONIT e ao Ministério dos Transportes autorizar as políticas, recaindo sobre o Conselho, portanto, a responsabilidade do teor deliberado das políticas de transporte. A ANTT não tem esse poder, e quando o têm, esse é-lhe delegado pelo CONIT ou pelo Ministério dos Transportes, integrante do Conselho.

O artigo 25 descreve o que cabe à ANTT no que importa ao transporte ferroviário. Leia-se o inciso V:

"regular e coordenar a atuação dos concessionários, assegurando neutralidade com relação aos interesses dos usuários, orientando e disciplinando o tráfego mútuo e o direito de passagem de trens de passageiros e cargas e arbitrando as questões não resolvidas pelas partes".

Há, ademais, um parágrafo único no artigo que acrescenta uma previsão do exercício desse inciso V, qualificando como deve ser feita essa regulação:

"Parágrafo único. No cumprimento do disposto no inciso V, a ANTT estimulará a formação de associações de usuários, no âmbito de cada concessão ferroviária, para a defesa de interesses relativos aos serviços prestados."

Aí já temos um quadro descritivo de como deveria funcionar o subsetor. Associações de usuários para defesa de seus interesses frente aos interesses da prestadora de serviço; regulação e coordenação da "atuação dos concessionários com vistas a" harmonizar os objetivos dos concessionários e usuários, "assegurando neutralidade com relação aos interesses dos usuários", arbitrando conflitos de interesses, impedindo situações de infração à ordem econômica.

Tal situação pressupõe um mercado comprador e vendedor de serviço de transporte, entre grupos ou pessoas jurídicas diferentes, pois que com interesses diferentes. No caso atual, em que cliente e prestadora de serviço não são separados e independentes, mas existem sob o controle acionário de uma mesma empresa monopolista, há —julgando-se pelo escopo limitado pela lei—, conflito de interesse segundo a "ordem econômica", o que pode ser interpretado pelos órgãos fiscalizadores, reguladores e autorizadores —ANTT e CONIT—, como concorrência imperfeita e infração da ordem econômica.

Está descrita acima a situação vigente dentro de uma mesma malha ferroviária, na qual a carga, quase sempre, é propriedade da mesma empresa que também domina a via permanente da ferrovia, o serviço de condução da carga, o material rodante que conduz a carga até um porto onde, quase sempre, a mesma empresa é proprietária de trechos de armazém e do pátio do porto. Em resumo, todo o trabalho de transporte, desde a área primário-exportadora até o porto de embarque é realizado pela mesma empresa, cujo interesse na indústria do transporte é apenas escoar sua produção.

Este caso vale para todas as ferrovias controladas pela Companhia Vale do Rio Doce: FCA, MRS, EFC e para a CFN de propriedade da CSN. No caso da ALL, é igualmente válido com exceção da propriedade da carga que não é da mesma empresa, notando-se que são as suas ferrovias as de maior variedade de carga em operação no País. De resto, segue o mesmo padrão de sobreposição de propriedade sobre a via permanente, o material rodante e o serviço de condução.

Por isso, quando se acompanha a suposição implícita na Lei 10.233 de junho de 2001, na qual haveria um mercado de serviço de transporte entre entes distintos, deve-se comparar o serviço de condução de carga prestado em cada uma das malhas, um com o outro, onde se encontraria o tal mercado de condução. Na teoria esse mercado existe, pois há diferentes ferroviárias a prestar esse serviço no território do Estado brasileiro, mas essa prestação de serviços não é concorrencial porque o cliente não tem independência de optar por uma ou outra empresa, restrito que está a se contentar com a empresa que domina a infra-estrutura ferroviária mais próxima dele.

No entanto, há diferenças entre as operações de ALL e CVRD, por exemplo. Nas ferrovias de propriedade desta última, os trens da Vale carregam seus minérios até os portos da Vale, através de empresas/ferrovias distintas, mas todas controladas acionariamente pela CVRD. Não há prestação de serviço para outro cliente que não seja a própria empresa.

Já a ALL, devido à sua área de atuação onde as culturas econômicas são mais diversificadas, presta o serviço de transporte a mais de um cliente, sem privilégio de nenhuma carga. Contudo, a sobreposição de propriedade ainda acontece entre a prestação de serviço de condução e propriedade do caminho de ferro por onde fazê-lo. Mais ainda, a ALL configura-se, e esse é seu "diferencial de mercado" mais bem reputado pelos agentes desse mercado, como uma empresa de logística, mais que uma ferroviária, pois presta o serviço de transporte de mercadoria "porta-a-porta", independente do modo de transporte, seja ferroviário, que domina em 21.000 km de vias em dois Países, seja rodoviário, no qual domina frota de caminhões da antiga transportadora Delara que trafegam por rodovias governamentais ou privatizadas de vários Países sul-americanos.

Mas como proceder com essa situação de concorrência imperfeita, então, posto que essa situação existe desde antes da criação da Agência Nacional ou do Conselho de Integração, que ainda nem foi nomeado?

Nesta questão sobre o aparelhamento do Estado com as necessárias formas de planejamento para o setor de transporte, deve-se proceder primeiramente nomeando o CONIT, do qual participarão técnicos do setor extraídos dos quadros da ANTT, da VALEC e do DNIT.

Esses técnicos foram parar nesses órgãos depois da extinção de seus órgãos originais, o GEIPOT, a RFFSA e o DNER. Na prática, trata-se de "recriar" o GEIPOT como estrutura estatal de planejamento, conquanto sob uma estrutura do Estado menos favorável do que aquela em que esteve no passado, pois o CONIT não é um órgão independente de planejamento, um órgão estatal simplesmente, mas um conselho vinculado diretamente à Presidência da República. Estará, portanto, sujeito a toda sorte de arbitrariedades que acometem os presidentes e seus gabinetes vez por outra, ao invés de se fundamentar em estruturas independentes e longevas, pré-requisitos para o planejamento de longo prazo. Entretanto, por ora isso é o máximo que se pode ter que se assemelhe a um órgão estatal de planejamento do setor.

Será tarefa do CONIT daí em diante aprovar o planejamento do setor, o qual deve ser elaborado no Ministério dos Transportes a partir do trabalho conjunto de técnicos oriundos dos institutos de pesquisa de cada modo de transporte: o IPR, Instituto de Pesquisa Rodoviária, alocado por ora no DNIT, o IPF, Instituto de Pesquisa Ferroviária em fase de elaboração[13], e o IPA, Instituto de Pesquisa Aeroviária, a se criar a partir do ITA, Instituto Tecnológico da Aeronáutica. A secretaria do ministério que deverá reunir esse trabalho já existe: a Secretaria de Política Nacional de Transportes.[14]

Para que sejam essas as instâncias de planejamento do setor, deverão ser removidas todas as sobreposições de função de planejamento que ora se encontram dispersas pela ANTT e DNIT. No caso da Agência, que atualmente encontra-se mais apta a elaborar os dados do setor para subsidiar o planejamento, ela terá de repassar esses dados sistematicamente ao Poder Executivo, na figura da Secretaria de Política Nacional de Transportes do Ministério dos Transportes, restringindo-se daí em diante em ser somente um corpo técnico de acompanhamento dos contratos de concessão, que é a sua função em Lei.

Aliás, é imperativo que seja esse o procedimento com a ANTT pois, tal como a agência está conformada hoje, com seu orçamento formado majoritariamente pelas receitas das concessões ferroviárias e rodoviárias, ela tem seu desenvolvimento atrelado ao processo crescente de privatização, significando que se desenvolve à medida da evolução do processo de privatização do patrimônio federal no setor.

Logo, a ampliação do aparelho estatal de planejamento através dela levaria, contraditoriamente, à necessidade de extensão das concessões a empresas privadas, pois, para realizar o objetivo geral de planejamento, a agência teria de saciar seus próprios interesses de manutenção, que passam por aumentar sua receita por meio de mais concessões.

Enfim, uma vez nomeado o CONIT, que será subsidiado pelos técnicos da Secretaria de Política Nacional de Transportes do Ministério dos Transportes, o Conselho tem de dar início ao planejamento da reforma do setor. Esse planejamento precisa ser iniciado pelo estabelecimento de um Programa de reforma jurídica do setor, a aplicar novas condições de mercado, descritas abaixo.



[1]

"Vender a Novoeste desassociada da Ferroban e da Ferronorte é impróprio, já que a Novoeste termina em Mairinque (SP), e Mairinque não é destino, Mairinque é passagem". Discurso do senador e presidente da CPMI dos Correios, Delcídio Amaral-MS, no plenário do Senado, em 10 de março de 2006, a respeito da revenda da Novoeste, vulga "Ferrovia da Soja", que nunca teve um porto próprio e dependia de seu entroncamento na malha paulista da Brasil Ferrovias em Mairinque e em Bauru para escoar a produção do estado de Mato Grosso do Sul por Santos. DELCÍDIO CRITICA PRIVATIZAÇÃO DE FERROVIAS. Revista Ferroviária, Rio de Janeiro, 10 de março de 2006.

[2]

Esse é o caso também das redes ferroviárias nos territórios dos estados argentino, chileno, boliviano e peruano.

[3]

No termo original em inglês, o Acesso Aberto é o "Open Access", forma que também é usada entre os brasileiros.

[4]

ASSEMBLÉE FÉDÉRALE DE LA CONFÉDÉRATION SUISSE. Loi fédérale sur les chemins de fer, du 20 décembre 1957 (Etat le 25 octobre 2005). CONSEIL FÉDÉRAL SUISSE. Ordonnance sur l’accès au réseau ferroviaire, du 25 novembre 1998 (Etat le 12 août 2003). CONSEIL FÉDÉRAL SUISSE. Ordonnance sur la construction et l’exploitation des chemins de fer, du 23 novembre 1983 (Etat le 9 décembre 2003). Disponível em: <http://www.europa.eu>. Acesso em: 27.mar.06.

[5]

DIRECTIVE 2001/16/EC OF THE EUROPEAN PARLIAMENT AND OF THE COUNCIL, OF 19 MARCH 2001, ON THE INTEROPERABILITY OF THE TRANS-EUROPEAN CONVENTIONAL RAIL SYSTEM. Official Journal of the European Communities. Disponível em: <http://www.europa.eu>. Acesso em: 27.mar.06.

[6]

COMUNIDADE EUROPÉIA. Livre blanc: une stratégie pour revitaliser les chemins de fer communautaires. União Européia, 1996. Disponível em: <http://www.europa.eu>. Acesso em: 27.mar.06, traduções minhas.

[7]

DIRECTIVE 2001/16/EC OF THE EUROPEAN PARLIAMENT AND OF THE COUNCIL, OF 19 MARCH 2001, ON THE INTEROPERABILITY OF THE TRANS-EUROPEAN CONVENTIONAL RAIL SYSTEM, p. 1, traduções minhas, grifos meus.

[8]

DIRECTIVE 2001/16/EC OF THE EUROPEAN PARLIAMENT AND OF THE COUNCIL, OF 19 MARCH 2001, ON THE INTEROPERABILITY OF THE TRANS-EUROPEAN CONVENTIONAL RAIL SYSTEM, p. 1, traduções minhas, grifos meus.

[9]

COMUNIDADE EUROPÉIA, 1996, p.4, traduções minhas. E o texto segue enunciando outras medidas de igual importância para vencer as fronteiras nacionais: "É doravante urgente melhorar as condições dos transportes internacionais de mercadorias; daí por que a Comissão vai promover a aplicação de 'freeways' ferroviárias transeuropéias onde o acesso será aberto e as condições de utilização simplificadas".

[10]

Quando esse subsetor foi transferido para uma estrutura similar, foi criada agência própria, a Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC), que substituiu o Departamento de Aviação Civil (DAC) da Aeronáutica, mas o controle do espaço aéreo, e portanto, a atuação direta sobre as empresas aéreas, permanece de domínio militar, através do CINDACTA e do Comando da Aeronáutica.

[11]

Para o caso do modo rodoviário, houve a tentativa de passagem da administração das estradas federais e estaduais para empresas privadas, tendo sucesso apenas as privatizações estaduais, continuando as federais sob responsabilidade do Ministério dos Transportes e Orçamento Geral da União, como se verá em capítulo adiante.

[12]

Com exceção da Ferrovia Teresa Cristina, especial para o carvão, e Ferropar, esta já virtualmente operada pela ALL.

[13]

Quando estive em Brasília em junho de 2006, entrei em contato com técnico aposentado do GEIPOT que atualmente "presta serviço" à Coordenadoria Ferroviária do DNIT como responsável pela elaboração do projeto de constituição do IPF, Instituto de Pesquisa Ferroviária. Segundo conversamos, esse instituto deverá ser formado pela soma de esforços de técnicos especializados em transporte ferroviário espalhados pelos centros de pesquisa do país, trabalhando sem uma sede própria mas segundo um arranjo trabalhista mais "irregular", o que, todavia, ele não foi capaz de me explicar como será.

[14]

O secretário nacional de políticas de transporte, José Augusto da Fonseca Valente, apresentou-me a sua equipe quando de minha visita ao ministério em junho de 2006: 10 técnicos carreiristas alocados na secretaria, supostamente responsáveis por toda a política nacional de transportes! O secretário revelou que na verdade eles não tinham tido muito trabalho nos últimos cinco anos (!), com o surgimento da ANTT, a qual, na prática, é o órgão que tem feito o planejamento do setor, pois conta com mais de 1.200 funcionários, supostamente apenas para observar e regular a atividade das empresas privadas concessionárias. É óbvio que os técnicos que estão nessa linha de frente do Estado em relação às empresas ativas do setor estão muito mais preparados para desenvolver o planejamento do setor. Ocorre apenas que a ANTT não é a instância adequada para esse planejamento, e sua atividade atual poderia ser muito bem enquadrada como ilegal, não fosse de extrema necessidade.

 

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